Uriel Horta e Gustavo Carvalho da PEXTRON®
Sumário
O artigo apresenta uma análise sobre o conceito de Cabines Primárias Inteligentes (CPI), mostrando sua evolução e as vantagens em relação às cabines tradicionais. Ele destaca a necessidade de superar a subutilização dos modernos relés de proteção digitais e propõe a adoção de suas funções secundárias para criar sistemas mais eficientes e confiáveis destacando benefícios tanto para consumidores quanto para concessionárias de energia. As Cabines Primárias Inteligentes são um passo crucial na evolução do setor elétrico brasileiro rumo à implementação plena das redes inteligentes, ou smart grids. A integração das CPIs ao conceito de smart grid possibilita maior confiabilidade no fornecimento de energia, redução de custos operacionais e melhora significativa dos indicadores de qualidade, como DEC e FEC. Além disso, a capacidade de antecipar falhas e otimizar a operação elétrica transforma as cabines inteligentes em peças fundamentais para o desenvolvimento de um sistema elétrico mais resiliente e dinâmico, essencial para atender à crescente demanda por eficiência energética no Brasil. Finalmente, a ideia de transformar as cabines em centros de inteligência também transforma o consumidor em um participante ativo dentro do conceito de smartgrid.
Introdução
Instalações elétricas de grande porte, como indústrias, prédios comerciais, shoppings, universidades, hospitais e hipermercados, possuem uma demanda significativa de energia. Para atender a essa necessidade, o fornecimento é realizado por meio da rede primária (média tensão), que exige o uso de subestações ou cabines primárias para a distribuição segura e eficiente de energia. As cabines primárias são compostas por um conjunto de sistemas e componentes destinados à medição, transformação, proteção e seccionamento da energia elétrica.O projeto dessas cabines deve ser personalizado, considerando alguns aspectos como:
- Características das cargas da instalação;
- Localização estratégica do centro de cargas e da cabine primária;
- Projeção de aumento de demanda;
- Conformidade com as normas da concessionária de distribuição de energia local.
Mesmo com o fornecimento em média tensão, interrupções e variações de energia podem ocorrer devido a falhas na rede de distribuição da concessionária de energia. Essas falhas podem ser provocadas por fatores como condições climáticas extremas, contato de árvores ou animais com a rede, colisões de veículos com postes, entre outros. Além disso, problemas internos nas instalações elétricas, como curtos-circuitos, falta de fase e sobrecargas, também podem causar prejuízos significativos.
Fig 1: Cabine Primária Metálica – Tradicional
Diante disso, torna-se indispensável a implementação de sistemas de proteção nas cabines primárias. Esses sistemas têm a função de identificar e atuar rapidamente diante de falhas, garantindo a segurança e a continuidade do fornecimento de energia. O principal componente do sistema de proteção das cabines primárias é o relé de proteção da entrada. É fundamental que o sistema de proteção das cabines primárias opere de forma seletiva em relação ao sistema de proteção da rede da concessionária. Essa seletividade assegura que, em caso de falha interna em um consumidor específico, o sistema da cabine atue primeiro, evitando que outros consumidores conectados à mesma rede sejam impactados pela atuação da concessionária.
Porém, este conceito de cabine primária já vem sendo aplicado desde meados dos anos 2000 e nada mudou desde então.
A verdadeira revolução reside na capacidade de transformar essas estruturas em centros de inteligência, explorando ao máximo as funcionalidades avançadas dos modernos relés de proteção digitais, que além das funções tradicionais de proteção, possibilitam a incorporação de uma série de funções adicionais que tornam o sistema mais seguro, eficiente e confiável.
A prática atual é a mesma dos anos 90 e ainda se restringe à ativação de funções principais, como se estivéssemos confinados à era dos relés eletromecânicos. Essa subutilização, impulsionada por especificações técnicas limitadas, normas desatualizadas e desconhecimento técnico, representa uma oportunidade perdida de elevar o padrão das instalações elétricas.
Este artigo propõe um novo conceito que transcende as limitações das configurações tradicionais, abraçando um futuro de maior segurança, confiabilidade e eficiência. Irá apresentar o vasto potencial das funções secundárias dos modernos relés, destacar seus benefícios e propor a integração de todas essas capacidades nas cabines primárias, transformando-as em Cabines Primárias Inteligentes. Este conceito, ainda pouco explorado, promete não apenas aumentar a segurança e a confiabilidade, mas também otimizar a manutenção e a operação dessas instalações, impulsionando o setor elétrico para o futuro.
Os consumidores serão beneficiados, pois passarão a identificar e corrigir problemas de forma antecipada, evitar custos elevados com reparos ou substituições de equipamentos e garantir que o sistema opere dentro dos limites seguros, além de poder reduzir o tempo de restabelecimento da energia e aumentar a segurança operacional ao reduzir a quantidade de manobras realizadas por operadores ou eletricistas.
As concessionárias de energia também serão beneficiadas, pois poderão alcançar mais altos padrões de qualidade no fornecimento de energia, o que é fundamental para garantir a satisfação do consumidor e melhorar os indicadores de qualidade, como os índices DEC (Duração Equivalente de Interrupção por Consumidor) e FEC (Frequência Equivalente de Interrupção por Consumidor).
“Cabine Primária Inteligente: A revolução que transforma instalações elétricas em centros de inteligência, antecipando falhas, otimizando a operação e garantindo a máxima segurança e confiabilidade.”
O Desafio da Subutilização
A lacuna entre o potencial dos modernos relés digitais e sua aplicação prática nos dias atuais, reside em três pilares principais:
- Especificações Técnicas Limitadas: A falta de visão inovadora nas especificações técnicas impede a exploração de recursos avançados, perpetuando a inércia tecnológica. Muitas vezes, as especificações exigem apenas as funções básicas de proteção, e não procuram avaliar o que existe disponível no mercado e propor melhorias às instalações, sejam novas obras ou reformas e modernizações.
- Normas e Procedimentos Desatualizados: A ausência de referências às funções secundárias dos relés digitais nas normas das concessionárias restringe a implementação de melhorias cruciais.
- Desconhecimento Técnico: A falta de familiaridade com as funcionalidades avançadas dos relés digitais limita a capacidade de projetistas, técnicos e engenheiros de otimizar os sistemas, evidenciando uma clara necessidade de atualização técnica para melhoria dos serviços prestados.
A Virada de Chave: Funções Secundárias como Pilar da Inteligência
Geralmente, dá-se maior importâncias às funções de proteção principais presente nos relés de entrada da cabine primária com as tradicionais funções contra curto-circuito, sobrecargas, sub/sobretensões, falta de fase, reversão de fases, sub/sobre frequência e também no transformador, seja à seco ou à óleo, com funções de proteção e controle térmico.
Fig 2: Moderno relé de proteção digital para cabines primárias
A adoção plena das funções secundárias dos relés digitais irá representar um salto qualitativo, transformando cabines primárias em sistemas inteligentes e autônomos. A “Cabine Primária Inteligente” se destaca por:
- Maior Segurança e Confiabilidade: A detecção precoce de falhas e a automação de processos críticos minimizam riscos e garantem a continuidade do fornecimento.
- Redução do Tempo de Inatividade: A recomposição automática de energia e o diagnóstico preciso de falhas agilizam a retomada das operações.
- Otimização da Manutenção: O monitoramento contínuo e a análise de dados permitem a manutenção preditiva, evitando paradas inesperadas.
- Prevenção de Danos a Equipamentos: A detecção precoce de anomalias e a atuação precisa dos dispositivos de proteção previnem danos dispendiosos.
- Redução de Custos Operacionais: A automação de processos e a otimização da manutenção resultam em economia de recursos e maior eficiência.
“Do obsoleto ao inovador: A Cabine Primária Inteligente desbloqueia o potencial oculto dos relés digitais, elevando o padrão das instalações elétricas para um futuro de eficiência e segurança sem precedentes.”
Evolução Para Cabines Primárias Inteligentes
Atualmente a tradicional cabine primária de média tensão pode ser vista como uma subestação de alimentação de consumidores de média tensão, porém com a incorporação de características que serão destacadas abaixo, passam a fazer parte das redes inteligentes, permitindo aos consumidores a serem um agente ativo no ecossistema de Smart Grids, promovendo eficiência, segurança e sustentabilidade energética.
Fig 3: A Cabine Primária Inteligente se enquadra no contexto de Smart Grid
Nos próximos tópicos, serão apresentados de forma resumida as principais funções secundárias dos modernos relés de proteção digitais, que ao serem implementados poderão provocar uma evolução de uma cabine primária tradicional para um novo conceito de “Cabine Primária Inteligente”.
ANSI 79V/79 F - Rearme Automático
A função de rearme automático permite que a cabine primária passe a realizar uma recomposição rápida da energia após variações momentâneas de tensão ou frequência, reduzindo o tempo de indisponibilidade e evitando deslocamentos desnecessários de equipe de manutenção e intervenção manual.
Para o uso correto desta função, é necessário que a instalação possua proteções de tensão implementadas (ANSI 27, ANSI 59, ANSI 81, ANSI 47), pois após a atuação destas funções o esquema de rearme automático é iniciado. Os desligamentos provocados por curto-circuito ou sobrecarga não se relacionam com este esquema e permanecem a requerer manobras manuais.
Após a atuação de uma das funções de proteção, por exemplo a função de subtensão ANSI 27, o relé desliga o disjuntor e após o retorno da tensão da rede às condições normais de operação, a função de rearme automático ANSI 79V passa a contar uma temporização para garantir uma condição segura da rede. Após este tempo, executa o rearme do disjuntor de forma automática. De forma similar ocorre o rearme automático por frequência pelo esquema ANSI 79F.
As funções ANSI 79V e ANSI 79F possuem ampla aplicação em sistemas onde a continuidade do fornecimento de energia é crítica, como indústrias, hospitais, data centers, sistemas de abastecimento de água e esgoto, usinas fotovoltaicas, etc.
Benefícios:
Redução do tempo de inatividade do sistema;
Aumento da segurança dos operadores ao minimizar a necessidade de manobras manuais;
Maior disponibilidade e continuidade do fornecimento de energia.
4.2- ANSI 74 e Função I²t – Monitoramento de Disjuntor
O relé de proteção de entrada da cabine primária pode realizar diferentes meios de monitoramento do disjuntor da cabine primária, que são a função ANSI 74 – Monitoramento do circuito e bobina de disparo e também a função I²t, que calcula o desgaste elétrico dos contatos principais.
O circuito de disparo e a bobina de abertura do disjuntor são componentes críticos que garantem a atuação do sistema de proteção. Falhas nesses componentes podem impedir a abertura do disjuntor em situações de falhas no sistema elétrico principal, comprometendo a segurança da instalação. Esta função ANSI 74, monitora a integridade do circuito de disparo e da bobina de abertura do disjuntor, detectando falhas antes que causem problemas maiores.
Fig 4: Diagrama funcional de um sistema de monitoramento do disjuntor – bobina de abertura e circuito de disparo
O monitoramento da bobina de abertura e circuito de disparo de disjuntor, faz parte de um conjunto de medidas que garantem que o sistema de proteção esteja operando conforme os requisitos de segurança e confiabilidade, como aqueles estabelecidos pela Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL).Também ajuda a concessionária de energia a melhorar os indicadores de qualidade, como os índices DEC (Duração Equivalente de Interrupção por Consumidor) e FEC (Frequência Equivalente de Interrupção por Consumidor).
Benefícios:
- Detecção antecipada de falhas no circuito de disparo;
- Redução do tempo de diagnóstico e manutenção;
- Prevenção de falhas operacionais graves.
A função I²t permite monitoramento do desgaste elétrico dos contatos principais do disjuntor, na qual as equipes de manutenção poderão obter informações para subsidiar intervenção no equipamento com base na corrente de abertura acumulada. O relé de proteção considera a corrente de falta e o tempo de extinção de arco do disjuntor e acumula este valor calculado para cada fase a cada abertura. Quando o acumulador ultrapassar um determinado valor pré-programado, haverá alarme acionando a necessidade de programar manutenção no disjuntor.
Benefícios:
- Monitoramento do desgaste elétrico: Proporciona uma visão precisa das condições operacionais;
- Manutenção preventiva baseada em dados: Subsidia a equipe de manutenção com dados que indicam o momento ideal para realizar intervenções para manutenção;
Isso permite que as equipes de manutenção planejem e executem as ações necessárias de forma proativa, evitando falhas inesperadas e reduzindo o tempo de inatividade.
Ao implementar as funções ANSI 79V/79F, 74 e I²t, obtém-se uma enorme capacidade de antecipar falhas e recompor automaticamente o fornecimento de energia contribuindo drasticamente para a redução dos índices de interrupção (DEC e FEC), elevando os padrões de qualidade do fornecimento de energia.
ANSI 98 - Oscilografia
A função ANSI 98- Oscilografia, é uma ferramenta essencial para a análise de distúrbios no sistema elétrico. Assim como um cardiologista utiliza um eletrocardiograma para avaliar a saúde de um paciente, a oscilografia registra as grandezas elétricas durante eventos anormais, fornecendo um dados detalhados sobre a “saúde” do sistema elétrico.
É um recurso que permite o registro detalhado das grandezas elétricas durante eventos anormais, como curto-circuito, subtensões, falta de fase, etc. Esses registros são gerados a partir das amostras das formas de onda das tensões e correntes e inclui os eventos digitais como contato de saída do relé, contato de disjuntores, etc capturadas em alta resolução e armazenadas no relé para posterior análise. Geralmente é armazenado um histórico do comportamento do sistema elétrico antes, durante e após a ocorrência específica.
Fig 5 – Registro de Oscilografia
A oscilografia é uma função que age como se fosse um seguro gratuito para diversas situações futuras e inesperadas, como
- Reivindicação de ressarcimentos junto à concessionária de energia, caso se constate algum prejuízo como queima de equipamentos ou então eventuais prejuízos operacionais devido a desligamentos na subestação;
- Analisar fenômenos elétricos nas instalações como uma corrente de inrush no transformador da cabine, uma polaridade invertida num TC, uma saturação em TCs de proteção ou uma atuação indevida do relé de proteção.
Ou seja, ao analisar oscilogramas é possível compreender certos problemas inesperados que ocorrem em comissionamentos ou na operação do dia a dia de um sistema elétrico e desta forma evitar reincidência destes fenômenos.
Benefícios:
- Análise detalhada e investigações de eventos elétricos;
- Verificação da atuação e otimização de ajustes de relés de proteção;
- Evidências técnicas para solicitações de ressarcimento junto à concessionária.
Perfil de Cargas
É uma ótima ferramenta de gestão e otimização do sistema elétrico, que permite monitorar e registrar o comportamento das cargas da cabine primária ao longo do tempo. Assim, o profissional envolvido poderá visualizar e analisar a carga em diferentes períodos (horas, dias, semanas ou meses), ajudando a identificar padrões de consumo, comportamentos anômalos, horários de pico, momentos de menor uso, etc o que facilita a tomada de decisões sobre a operação do sistema, como redistribuir cargas ou planejar manutenções preventivas.
Permite também a detecção de tendências de aumento de consumo que podem levar a sobrecargas e falhas no sistema, possibilitando ações preventivas, desperdícios de energia e oportunidades de otimização, ajudando na implementação de medidas de eficiência energética.
Benefícios:
- Otimização do sistema elétrico e identificação de padrões de consumo: Permite visualizar e analisar o comportamento das cargas em diferentes períodos, facilitando a identificação de horários de pico e momentos de menor uso, ajudando na otimização do sistema;
- Prevenção de falhas: A detecção de tendências de aumento de consumo ajuda a evitar sobrecargas e falhas no sistema, possibilitando a implementação de ações preventivas;
- Eficiência energética: O perfil de cargas permite identificar desperdícios de energia e oportunidades de otimização, contribuindo para a adoção de medidas de eficiência energética.
Comunicação Remota
Os modernos relés de proteção possuem capacidade de comunicação com centros de supervisão e controle do sistema elétrico, seja da concessionária, bem como do consumidor ou acessante.
Benefícios:
- Monitoramento e controle à distância: Ações remotas como comando de disjuntor, monitoramento das grandezas elétricas, sem a necessidade de presença física no local, proporcionando maior agilidade na operação e resposta a eventos;
- Diagnóstico e manutenção preventiva: Com a comunicação remota, é possível receber alertas automáticos e relatórios de falhas ou anomalias no sistema, facilitando o diagnóstico e a tomada de ações preventivas antes que ocorram falhas maiores;
- Redução de custos e aumento da segurança: Ao evitar deslocamentos frequentes para inspeção e operação manual da cabine primária, a comunicação remota contribui para a redução de custos operacionais e para o aumento da segurança dos operadores, minimizando a exposição a riscos;
- Respostas rápidas a eventos: Permite respostas rápidas a eventos de falha, minimizando os impactos sobre o sistema elétrico e os consumidores.
Considerações Finais: O Caminho para a Cabine Primária Inteligente
Embora os relés de proteção digitais ofereçam funções avançadas e poderosas, muitas dessas funcionalidades ainda são negligenciadas, o que impede a evolução das cabines primárias para um novo modelo mais eficiente e seguro. A implementação dessas funções secundárias, que já estão disponíveis nos relés modernos, é simples, não implica em custos adicionais e pode transformar substancialmente o desempenho do sistema.
“Para alcançar uma Cabine Primária Inteligente, é fundamental que projetistas, engenheiros e técnicos explorem todas as funcionalidades disponíveis, garantindo uma operação mais eficiente, segura e sustentável.”
Este conceito de “Cabine Primária Inteligente” representa um novo paradigma para o setor elétrico, impulsionado pela exploração plena das funcionalidades dos relés digitais. Sua adoção exige uma mudança de mentalidade, com a inclusão de funções secundárias nas especificações técnicas, a atualização das normas e a promoção de treinamentos para disseminar o conhecimento técnico.
Recomendações
- Incluir as funções secundárias nas especificações técnicas de novos projetos e retrofits de subestações primárias de média tensão;
- Atualizar as normas e procedimentos das concessionárias para refletir as capacidades dos modernos relés digitais;
- Promover a disseminação de conhecimento por meio de treinamentos e workshops voltados para a capacitação dos profissionais do setor.
A adoção plena dos relés digitais e de suas funcionalidades secundárias representa o futuro da gestão de energia elétrica, oferecendo não apenas proteção, mas uma operação mais inteligente e eficiente.